As chuvas de março em São Paulo e a Engenharia

Novas tragédias ocorreram há poucos dias, na noite de 10 para 11 de março de 2019. Os noticiários indicam que a Região Sul da Capital e o Grande ABC da Paulista tiveram 13 mortes, sendo 7 por afogamento, 4 (da mesma família) por deslizamentos de terra em Ribeirão Pires e um bebê em Embu das Artes (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/11/veja-quem-sao-os-mortos-por-causa-da-chuva-na-grande-sp.ghtml).

Trata-se de uma questão dolorida para a Engenharia quando esta se pergunta: o que poderíamos ter feito para evitar a perda dessas vidas?

E mais: estações de trem, rodoviárias e outros transportes públicos amanheceram sem condições de atendimento à população. O rodízio de automóveis foi suspenso devido à impossibilidade de se pegar um transporte público, porém a recomendação no dia seguinte foi de não sair de casa, mesmo porque seria praticamente impossível chegar ao trabalho ou à escola devido aos alagamentos que ainda persistiam. Aulas foram suspensas. A Via Anchieta estava bloqueada por alagamentos. Indústrias deixaram de produzir, empresas sofreram perdas das instalações. Tudo isso, além das vidas perdidas, monstra que o prejuízo à economia e ao patrimônio de forma geral foi muito alto.

E o que a Engenharia poderia ter feito para evitar tantos prejuízos? Pois bem, vamos fazer uma análise do que poderia ter sido feito ou não do ponto de vista técnico.

Críticas aos investimentos

É interessante verificar que logo surgem as manchetes de oposição do tipo: “o governo investe menos da metade do orçamento contra enchentes” e mais adiante: “… obras se arrastam e já custaram 50 milhões”. Além das críticas aos investimentos na área de saúde e etc. E embora tudo isso seja a verdade, é importante ter senso crítico e avaliar o que de fato poderia mudar se tivesse sido investido todo o orçamento e as obras tivessem sido executadas dentro do cronograma.

É interessante verificar que logo surgem as manchetes de oposição do tipo: “o governo investe menos da metade do orçamento contra enchentes” e mais adiante: “… obras se arrastam e já custaram 50 milhões”. Além das críticas aos investimentos na área de saúde e etc. E embora tudo isso seja a verdade, é importante ter senso crítico e avaliar o que de fato poderia mudar se tivesse sido investido todo o orçamento e as obras tivessem sido executadas dentro do cronograma.

Chuva de projeto e Tempo de retorno – conceitos

Do ponto de vista da Engenharia, há o conceito de “chuva ou precipitação de projeto”, que é o valor que se estabelece para estimar a pior chuva que a obra poderia ter de suportar durante sua vida útil. Esse valor de projeto é estabelecido com base em análises estatísticas das bases históricas de precipitações registradas na região em que se vai implantar a obra, dentro da disciplina Hidrologia.

Para ilustrar, a diferença entre a Hidrologia e a Meteorologia é que a primeira estima a probabilidade de ocorrer uma chuva mais intensa do que a adotada em projeto, e verificando se essa probabilidade é baixa o bastante para que a obra sobreviva a essa precipitação, sendo a escala medida em anos. Já a Meteorologia verifica o que deve acontecer nas próximas horas ou dias em termos de clima.

Assim, o conceito de chuva de projeto, portanto, deve levar em conta a vida útil da obra e os custos de sua reforma ou reconstrução no caso de acontecer o evento de chuva limite adotado. Em geral, as chuvas de projeto para sistemas de drenagem urbana podem ser da ordem de 25, 50 ou 100 anos de recorrência (ou retorno do evento de chuva), dependendo do impacto econômico e social que a obra pode causar na região se não suportar a chuva em questão. Desta forma, é importante verificar que uma obra de drenagem não poderia ser projetada para suportar uma chuva de 200 ou 500 anos de período de recorrência em todos os casos, pois ela custaria uma fortuna e isso não se justificaria, seria considerado “superfaturamento”. Veja que o Brasil vai completar apenas 519 anos agora.

Por outro lado, uma Usina de Itaipu, nosso orgulho nacional, foi projetada para uma chuva tão grande que o período de retorno estimado é da ordem de 10 mil anos. Isso porque seria realmente o fim do mundo para boa parte da Argentina, Uruguai inteiro e Rio Grande Sul caso ela viesse a se romper com uma chuva catastrófica. Esse tremendo impacto em vidas leva à necessidade de se adotar chuvas de projeto com tempos de retorno muito elevados.

Em resumo, caso a chuva da madrugada de 10 para 11 de março tenha superado a chuva de projeto dos sistemas de drenagem, cujo tempo de retorno provavelmente seria no máximo da ordem de 100 a 150 anos, mesmo com todos os investimentos sendo executados e no prazo estipulado, ainda assim aconteceriam problemas de alagamentos.

Tempo de detenção da bacia e urbanização – conceito

Outro fator decisivo é o tempo de detenção das bacias que recebem a chuva.

Bacia, para efeito desse artigo, pode ser considerada toda a região que recebe precipitação (chuva) e que a encaminha para um ponto mais baixo, chamado de “exutório”, que em geral é um ponto de encontro de um córrego com um rio maior (numa cidade estes podem estar canalizados e enterrados o que limita sua vazão). Cada bacia é delimitada pelas regiões mais altas, chamadas de “divisores de águas”, geralmente identificada com elevações mais extensas do que os topos de morros, os chamados espigões.

O tempo de detenção pode ser entendido como o tempo que leva para a primeira gota de chuva que caiu no ponto da bacia mais afastado leva para alcançar o exutório. Em geral, este é o tempo que leva para a água alcançar o seu nível e vazão máximos.

É importante notar que quanto mais impermeabilizada com concreto e asfalto for a bacia, menor será este tempo. Portanto, em menos de 5 minutos pode ser que o água já atinja o nível de arrastar um carro no ponto próximo ao exutório de uma bacia urbanizada.

Numa bacia natural, onde há floresta, a mesma chuva levaria várias horas para alcançar o exutório e causar tal alagamento. A chuva já teria acabado muito antes disso, e a vazão se dissiparia sem alcançar um nível tão elevado. Já uma bacia rural, com pasto, estaria numa condição intermediária, pois a água ganharia mais velocidade do que em meio a uma floresta.

Portanto, quando o Código de Obras exige área permeável nos empreendimentos, ele não está querendo tomar área útil do proprietário, mas sim pretendendo reduzir o pico de vazão que a região vai sofrer. Uma alternativas são as chamadas “piscininhas” nos edifícios que constroem em 100% da área do terreno, que são reservatórios para a água pluvial (de chuva), que deve ser bombeada após o término da chuva, de forma mais lenta do que ocorreria se toda essa água captada pelos telhados e pátios cimentados fosse lançada diretamente nas sarjetas.

Assim, o nosso processo de urbanização desenfreada é um dos grandes motivos das enchentes. E os volumes de piscinões não bastam para dar conta de tanta impermeabilização.

Quanto choveu nesse evento?

As notícias indicam que choveu 110 mm, o previsto para o mês todo, que caiu em cerca de 6 horas mas há informações de que o Grande ABCD recebeu cerca de 100 mm em apenas 3 horas. O acumulado de 12 horas foi da ordem de 180 mm em locais de Santo André. É possível analisar-se este dado para se verificar se essa chuva está ou não dentro do período de retorno usualmente adotado para os projetos de drenagem urbana, de modo a se analisar criticamente a afirmação de que os investimentos a aceleração das obras teriam dado conta dessa chuva.

Dados do CEMADEN indicam os seguintes números em seus pontos de medida no período de 12 horas, entre 15h30 de 10/3/19 e 3h30 de 11/3/19 (https://www.climatempo.com.br/noticia/2019/03/11/numeros-do-diluvio-sobre-a-grande-sp-10-11-de-marco-de-2019-3024):

  • Santo André/Vila Ramalho: 182,3 mm
  • São Bernardo do Campo/Centro: 176,8 mm
  • Ribeirão Pires/Vila Mortari: 169,8 mm
  • Mauá/Parque das Américas: 168,1 mm

Já o CGE mediu: em São Bernardo do Campo/Riacho Grande: 140,8 mm e em Mauá/Paço Municipal: 124,6 mm.

O tratamento destes dados para se obter o tempo de retorno dessa chuva será feito em separado. Envie-nos seu interesse em entender como se faz esse cálculo.