Deslizamentos em Franco da Rocha

Após novo período de grande carga de trabalho, retomo nosso blog mais uma vez com a triste notícia de mais uma tragédia com as fortes chuvas que ocorreram neste janeiro de 2022.

Lamentamos muito as vidas perdidas e precisamos entender como tais situações acontecem para evitá-las. Farei apenas uma observação rápida de como a Engenharia pode ser usada para evitar desastres semelhantes e proteger as pessoas, principal finalidade de um engenheiro. Para isso vou emprestar a imagem aérea de um deslizamento publicada pelo site do G1:

Foto 1: Antes do deslizamento

fonte: Veja antes e depois das chuvas em Franco da Rocha, na Grande SP | São Paulo | G1 (globo.com)

Este deslizamento ocorreu na rua São Carlos em Franco da Rocha. Da imagem de satélite, para um olhar de Engenheiro bem formado, pode-se interpretar que a curvatura da rua não foi feita sem motivo: ela acompanha a curva de nível do terreno. Quando curvas de nível têm esse tipo de conformação curva, a “ponta” delas indica a região mais alta, e pode-se traçar uma linha ligando essas “pontas” das curvas de nível para obter o caminho que as águas de chuva devem seguir por gravidade, ou seja, o talvegue (ponto mais baixo na região inclinada) pelo qual a água naturalmente vai passar.

Dessa forma, todas as casas construídas na parte de dentro da curva acabam por receber uma grande vazão de água vinda da parte mais alta do terreno. Essa região deveria ter sido considerada como não-edificante, ou seja, uma região a ser preservada sem construções para permitir a passagem da água. Quando se pretende construir nessas condições, deve-se ter um projeto de drenagem que receba, para um determinado período ou tempo de retorno de chuvas intensas, essa quantidade de água no caso de uma chuva tão forte quanto a que ocorreu.

O resultado catastrófico e mortal da passagem da água pode ser visto no mesmo link, na foto reproduzida abaixo:

Foto 2 – Depois da chuva

fonte: Veja antes e depois das chuvas em Franco da Rocha, na Grande SP | São Paulo | G1 (globo.com)

Nesse caso em questão, as águas aqui desceram em direção ao Rio Juqueri, passando pela ferrovia mais abaixo. Na imagem a seguir (que está girada no sentido anti-horário em relação às duas fotos anteriores), as setas azuis indicam o caminho que as águas fazem naturalmente, sendo que na parte em que cruza a ferrovia aparece tracejada pois provavelmente passa por tubulações enterradas.

Foto 3: Caminho natural as águas na curva da Rua São Carlos

Fonte: Modificado de Google Maps

Pode-se ver na foto 3 a concentração das águas bem na região da curva da sua São Carlos, convergindo para a casinha cujo teto aparece no centro da foto 1, onde ocorreu o deslizamento.

A foto seguinte mostra uma vista do local e permite enxergar um pouco do relevo fortemente inclinado:

Foto 4 – Vista da Rua São Carlos

Fonte: Street View Google Maps

Na foto 4 a região que sofreu deslizamento do solo está logo a seguir da edificação azul à direita, sendo que a mesma também foi atingida.

Um pouco antes deste ponto, voltando pela rua, pode-se ter uma vista mais ampla da inclinação dessa região:

Foto 5 – Vista geral do relevo

Fonte: Street View Google Maps

Na foto 5 pode-se ver uma mureta de blocos na borda do asfalto (onde seria a sarjeta) para evitar que a água da chuva desça para os terrenos e casas no nível mais baixo. Nesta mesma foto, além da forte inclinação do terreno, pode-se ver a ferrovia ao fundo. O Rio Juqueri passa ao lado dela, como se vê na foto 3, de cima.

A casa cujo teto aparece em meio à vegetação bem no centro da foto 1 pode ser vista de frente na foto 6:

Foto 6 – Casa para a qual convergiu toda a chuva

Fonte: Street View google Maps

Note-se as casas na região mais alta, as quais por pouco não desceram juntamente com o solo do deslizamento (ver foto 2, de cima). Os moradores dessa casinha não tinham a consciência de que o local tão agradável onde moravam, em meio à árvores e vegetação, era na verdade um local perigoso quando ocorressem chuvas muito intensas. Da mesma maneira, do outro lado da rua, as pessoas talvez já tivessem experimentado desconfortos por invasão da água de chuva vinda da sarjeta da rua, mas certamente não esperavam que uma massa de água e solo tão grande deslizasse sobre suas casas, vitimando-os todos (foto 7):

Foto 7 – Vista das casas do outro lado da rua

Fonte: Street View Google Maps

Todos os moradores dessas casas foram vítimas do deslizamento ocorrido. Pessoas que a Engenharia deveria ter protegido. Mas como se poderia ter impedido isso?

Sabe-se que nossa sociedade brasileira, com tamanha desigualdade na distribuição de renda, supervaloriza os imóveis próximos ao centro das cidades e praticamente obriga as pessoas com renda menor a ocupar regiões periféricas, distantes e com pouca infraestrutura e em ocupações irregulares, sem controle da municipalidade. Portanto, em condições de ocupação não aprovada oficialmente, ou seja, sem um trabalho de Engenharia prévio no projeto, as chances desse tipo de situação ocorrerem são muito grandes. A Engenharia existe para proteger a sociedade deste tipo de risco.

Num empreendimento imobiliário de loteamento aprovado evidentemente existe, no caso de se optar por construir nessa região de talvegue, uma análise de custos do sistema de drenagem para um dado período de retorno de chuvas intensas versus o benefício de se ter mais terrenos para serem vendidos no empreendimento. Pode ser que em muitas situações seja melhor não projetar terrenos para construções nos talvegues, mas sim, preservá-los para a drenagem adequada das águas de chuvas intensas.

Mas ainda que se decida por construir num talvegue, o período de retorno deve ser muito bem definido, com critérios técnicos, sob a pena de se “forçar” uma redução de custos de implantação do empreendimento que pode levar a um desastre semelhante, mesmo com a aprovação formal do loteamento.

Se adotado um período de retorno de 25 anos, por exemplo, a obra de drenagem será muito mais barata do que quando se adota um período de 50 anos, pois a chuva intensa que costuma acontecer (retorna) em média a cada 25 anos tem uma intensidade menor do que as chuvas intensas que retornam a cada 50 anos. Chuvas muito intensas costumam se repetir (estatisticamente) a intervalos de tempo maiores. A chuva de 25 anos pode acontecer mais de uma vez nesse intervalo de tempo, pois se trata de uma análise estatística, da mesma forma que a chuva de 50 anos, mas em se tratando da vida de pessoas, 100 ou 200 anos talvez fosse o minimamente adequado.

Esse é um ponto importante na tomada de decisão de projetos de drenagem, pois projetar para um tempo de retorno de 100 anos não significa que o sistema de drenagem vai durar 100 anos sem causar desastres, mas que há uma chance pequena desse desastre acontecer dentro do período de 100 anos após a sua construção. Se adotado 200 anos de tempo de retorno para o projeto as chances de acontecer diminuem, mas o porte da obra e os custos aumentam. São noções que as pessoas em geral não têm e chamo a atenção aqui para que se entenda que uma construção em talvegue, mesmo com a boa Engenharia, apenas reduz a chance de ocorrer o desastre, não elimina a chance de sua ocorrência.

Portanto, evitar que construções sejam feitas em regiões de risco como talvegues seria a forma mais adequada de se evitar desastres como este.

Em breve devo publicar mais alguns artigos sobre o tema e os níveis de chuva, tempo de retorno dessa chuva particular que atingiu Franco da Rocha entre outros detalhes técnicos, esperando trazer conscientização às pessoas sobre a importância da Engenharia na sociedade. Até breve.